Quando
cheguei ao leito de Alfredo Cortes, debatia-se o velho entre as raias da morte.
Afastei
o populares que se aglomeravam ao pé do quarto, e pedi garantias para
examiná-lo severamente.
O
coronel Cortes fora vítima de traiçoeiro golpe agonizava sem esperança.
O
punhal atingira o coração e, condoído, sentei-me, desarvorado.
-
Coronel - perguntei, ansioso - quem lhe fez isso?
O
moribundo , buscou em vão, mover os olhos na direção do grande cofre violado e
ciciou um nome.
-
A...prí...gio...
Senti-me
empolgado de horror. Aprigio era o rapaz que ele amava como a um filho. Aprígio
fora enjeitado à porta de Cortes , quando D. Alzira, a esposa, ainda estava na
Terra. O casal sem filhos exultara. Muitas vezes vira eu os amigos em passeio
para distrair a criança. Aprígio crescera mimado, respeitado, protegido. Não
quisera cursar escola de ensino superior; entretanto recebera instrução
suficiente para desempenhar profissão respeitável. Costumava encontrá-lo, à
noite, junto à amigos desocupados. Nunca podertia suspeitar, porém, de que
estivesse caminhando para semelhante loucura.
O
coronel cravou em mim os olhos embaciados, conquanto lúcidos e expirou. Chegara
o fim.
Emocionado,
abri passagem, de modo a notificar meu apontamento à polícia, mas a sala
continuava povoada de vozes ásperas.
Dei
alguns passos e estaquei.
-
É ela! é ela!
Madalena
Leandro, pobre lavadeira, era puxada pelos cabelos.
Aprígio
estava à frente do grupo, gritando com veemência.
Madalena
fora apanhada no telhado, mostrando enorme aflição. Acusada, não se defendera.
Tudo inclinava a autoridade a crer fosse ela a homicida.
Intrigado,
avancei para a infeliz perguntando:
-
Diga, Madalena! Confesse! Foi realmente você?
A
desditosa mulher, em silêncio, fixou em mim os olhos agoniados, à maneira de
triste animal sentenciado a morte.
Havia
um imperativo em minha pergunta, que a mísera, como que hipmotizada, confirmou
sob o pranto pesado a lhe escorrer pelo rosto.
-
Sim.. fui eu!
-
Assassina! Assassina! - clamou Aprígio colérico - E o dinheiro? onde está o
dinheiro?
Como
a acusada não respondesse, o moço precipitou-se de punhos cerrados e, a
esmurrar-lhe o peito, bramia desesperado:
-
Dia! diga! Maldita! Maldita!
A
infeliz tombou de joelhos e rogou, súplice:
-
Piedade! pelo amor de Deus, tenham piedade de mim!
Busquei
debalde interferir, para evitar novo crime, quando o rapaz lhe aplicou um
pontapé à altura dos pulmões e a lavadeira rolou, desgovernada. O sangue
borbotava-lhe agora da boca trêmula e, revoltado. consegui acalmar os ânimos.
E
ouvindo-me a defendê-la, o responsável pela ordem ponderou:
-
Doutor, compreendemos a sua indignação, mas, afinal de contas o pobre rapaz
está possesso de angústia... Acaba de perder o pai e, sinceramente, no lugar
dele, não sei se me comportaria de outra maneira.
Entendi
que a hora não admitia réplicas e solicitei fosse Madalena conduzida à prisão
para as medidas aconselháveis. Mas, continuei de atenção voltada para o
assunto.
Perseguida
por Aprígio, a infortunada mulher foi submetida a inquirições humilhantes.
Sempre que interrogada, declarava-se autora do estranho homicídio, mas instada,
a dizer algo sobre,o furto, calava-se, e com isso sofria novas torturas.
Procurei
o juiz indicado para o processo, em segredo, esclarecendo-o quanto à minha
observação em caráter de confidência. E, após atender-me, o magistrado, gentil,
promoveu acareações.
Aprígio
foi chamado a depor, diante da ré.
E
fazendo força para atingir sua consciência não vacilei em arrolar-me entre as
testemunhas. Percebendo-me, todavia a atitude, explicara que o velho desde
algum tempo mostrava sintomas de alienação mental. Esquecia nomes familiares,
truncava referências. E acentuava que não tinha dúvidas quanto a culpabilidade
de Madalena. Decerto, ela enterrara o dinheiro roubado e algum lugar. Madalena
fora, em outro tempo, lavadeira da casa. Conhecia passagens e escaninhos.
A
acusada ouvia, em lágrimas, silenciando... Se alguém perguntava, ao fim do
interrogatório:
-
Mas foi você? - Madalena chorava muda, fazendo gesto afirmativo.
O
sofrimento, contudo, alquebrara-lhe as forças. Anotando-me o interesse pela
infeliz, a autoridade judiciária permitiu pudesse, de minha parte
hospitalizá-la para tratamento preciso.
A
acusada, entretanto, como se houvesse desistido da existência, não mostrou
qualquer reação favorável na saúde e, ao cabo de vinte dias, providenciava-lhe
o enterro de última classe.
E
a vida continuou na marcha irrefreável.
Por
muito tempo, demorei-me ainda entre os homens, e assisti a ascenção e à queda
de Aprígio. Dono da regular fortuna que herdara em testamento do coronel,
prosperou à princípio, para cair, mais tarde em descrédito, depois de largos
anos em jogatina e dissipação. Findo longo período de enfermidade, morrera,
internado em um hospício.
Um
novo dia, entretanto, chegou para mim e também vi-me de retorno ao plano
espiritual. A morte do corpo renovara-me a alma e, em pleno acesso a lutas
diferentes, dentre os amigos que vieram trazer-me o abraço afetivo, Madalena
surgiu, nimbada de luz.
Conversamos,
alegremente, e porque o passado me batesse em cheio na tela da memória,
formulei a pergunta discreta... Afinal, onde estava a verdade? Não fora Aprígio
o autor do assassinato?
A
heroína, porém, fitando-me de frente, tudo esclareceu, respondendo, calma:
-
Doutor, nada pude falar, porque Aprígio, o infeliz criminoso, era meu filho...
(Texto extraído do livro Almas em Desfile.
Psicografia de Chico Xavier e Waldo Vieira - Espírito Hilário Silva).